Quando foi a última vez que você fez algo novo sem pensar na utilidade daquilo? Essa pergunta simples revela muito sobre a forma como vivemos hoje. Cursos, exercícios, hobbies — tudo precisa ter um propósito, de preferência produtivo. Não por acaso, estudiosos já definem esse cenário como a “sociedade do esgotamento”: hiperconectada, viciada em performance e, paradoxalmente, adoecida.
Nesse contexto, um hormônio ganhou protagonismo nos consultórios médicos: o cortisol. Ele é conhecido como o hormônio do estresse e, em níveis equilibrados, tem funções essenciais à sobrevivência. No entanto, quando permanece cronicamente elevado — como ocorre em uma rotina sem pausas —, pode causar danos profundos ao corpo e à mente.
Segundo a endocrinologista Dra. Deborah Beranger, o cortisol antes era liberado apenas em situações pontuais de risco, como um mecanismo evolutivo de defesa. “Hoje, ele se mantém alto praticamente o dia todo, num estado constante de alerta. Isso leva a um verdadeiro ‘vício bioquímico’, com consequências graves”, afirma.
O vilão que um dia foi herói
O cortisol, produzido pelas glândulas suprarrenais, é fundamental para regular energia, atenção e resposta ao estresse. Entretanto, como explica a Dra. Deborah, vivemos sob um modelo que estimula a hiperatividade constante do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, fazendo com que o corpo não tenha tempo para se recuperar.
“Ele nos ajuda a cumprir prazos, atravessar noites mal dormidas e enfrentar agendas sobrecarregadas. Porém, esse mesmo hormônio, que parece nos manter vivos, é também o que está nos adoecendo”, alerta a especialista.
De maneira silenciosa, os efeitos se acumulam. O excesso de cortisol está ligado ao ganho de peso, insônia, queda de cabelo, distúrbios de memória, problemas digestivos e desequilíbrios hormonais. Em muitos casos, também se associa a quadros de depressão, burnout e até risco aumentado de doenças mais graves, como o câncer.
Efeitos colaterais do excesso
Além dos danos metabólicos, o cortisol interfere em escolhas alimentares, favorecendo alimentos altamente calóricos e pouco nutritivos. Também compromete o sono, causa inflamação crônica e agrava doenças de pele, como acne e dermatites.
“O sono se fragmenta, o corpo se mantém em vigília, e mesmo após oito horas na cama, muitos acordam exaustos. Isso perpetua um ciclo de estresse e fadiga”, explica a médica. Para piorar, o cortisol impacta negativamente regiões do cérebro como a amígdala — intensificando a ansiedade — e o hipocampo, enfraquecendo a memória e o aprendizado.
O sistema digestivo também sofre. O hormônio reduz a diversidade da microbiota intestinal, afeta a digestão e provoca sintomas como inchaço, dores abdominais e dificuldade na absorção de nutrientes. A cicatrização e a recuperação de lesões ficam prejudicadas, o que compromete a saúde geral.
É possível sair desse ciclo?
Sim, mas isso exige mais do que apenas boa vontade. Segundo a Dra. Deborah, a quebra do ciclo do cortisol passa por quatro pilares: sono, alimentação, movimento e controle do estresse.
- Sono: Estabelecer uma rotina regular, evitar luz azul à noite e priorizar um ambiente propício ao descanso são atitudes essenciais.
- Alimentação: É importante reduzir açúcares, álcool e cafeína, priorizando alimentos naturais e ricos em nutrientes.
- Atividade física: O exercício moderado regula o eixo do estresse, melhora o humor e ajuda a reduzir os níveis de cortisol.
- Relaxamento e presença: Práticas como ioga, meditação, mindfulness e psicoterapia contribuem diretamente para o reequilíbrio hormonal.
Contudo, a médica destaca que há algo mais profundo a ser revisto: o conceito de sucesso. “Precisamos parar de medir a vida apenas por produtividade e performance. É necessário valorizar o tempo livre, o ócio criativo, o bem-estar emocional. O cortisol não é o vilão; vilão é o estilo de vida que nos mantém permanentemente sob pressão.”
Mais leveza, menos exaustão
Assim, o maior desafio contemporâneo talvez não esteja apenas em encontrar tempo, mas sim em reprogramar o que fazemos com ele. Viver não pode ser apenas correr contra o relógio. É preciso também parar, sentir e respirar.
Fonte:
Dra. Deborah Beranger — Endocrinologista com pós-graduação em Endocrinologia e Metabologia pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (SCMRJ) e Terapia Intensiva pela Faculdade Redentor/AMIB. Possui cursos pela Harvard Medical School, Unicamp e European Association for the Study of Obesity. É também speaker de diversos laboratórios e atua como divulgadora científica nas redes sociais.
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