Câncer e desigualdade social: no Brasil, o CEP, a cor e a renda ainda determinam quem sobrevive

Acesso desigual a diagnóstico e tratamento torna a luta contra o câncer ainda mais injusta no país

Câncer e desigualdade social: no Brasil, o CEP, a cor e a renda ainda determinam quem sobrevive

Em um país que deve registrar mais de 700 mil novos casos de câncer por ano, o desfecho da doença vai muito além de fatores biológicos. No Brasil, o acesso ao diagnóstico precoce, às terapias mais eficazes e ao acompanhamento especializado ainda depende da cor da pele, do endereço e da renda familiar. Em outras palavras, a desigualdade social é uma sentença silenciosa — e muitas vezes letal.

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“Infelizmente, o câncer não escolhe classe social. Mas o sistema de saúde sim”, afirma o oncologista Dr. Ramon Andrade de Mello, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Cancerologia. Segundo ele, as disparidades no tempo de diagnóstico e no acesso aos tratamentos modernos ajudam a explicar por que as taxas de mortalidade por câncer variam tanto entre regiões e grupos sociais.

Atraso no tratamento: a corrida contra o tempo que nem todos vencem

A “Lei dos 60 dias”, em vigor desde 2012, estabelece que todo paciente com câncer tem o direito de iniciar o tratamento em até dois meses após o diagnóstico. Na prática, no entanto, essa meta ainda é exceção. Dados do INCA mostram que apenas 35% iniciam quimioterapia dentro do prazo, e apenas 16% conseguem iniciar radioterapia nesse intervalo.

Enquanto isso, na rede privada, todo o processo entre o primeiro sintoma e o início do tratamento pode levar menos de 30 dias. Já no SUS, o tempo médio ultrapassa 180 dias — diferença que, segundo o Dr. Ramon, pode reduzir pela metade as chances de cura. “O câncer não espera. Quanto mais precoce o tratamento, maiores as chances de sucesso”, reforça.

Cor e gênero: o racismo estrutural também adoece

Além das desigualdades regionais e econômicas, o racismo estrutural amplia o risco para mulheres negras. De acordo com uma pesquisa do Instituto Avon e do Observatório de Oncologia, essas mulheres representam 24% das que realizam mamografia, mas respondem por 47% dos casos diagnosticados em estágio avançado.

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A taxa de sobrevida em cinco anos é até 10% menor para mulheres negras do que para brancas. “Não é uma questão biológica”, afirma o médico. “Essas mulheres têm menos acesso ao rastreamento, ao diagnóstico precoce e ao tratamento adequado”.

Quando o CEP vira fator de risco

O lugar onde se vive também determina a chance de sobreviver. O estudo “Câncer nas Favelas”, conduzido pelo Instituto Data Favela em 2023, revela um retrato alarmante:

  • 82% dos moradores de favelas dependem exclusivamente do SUS;
  • 69% têm dificuldade de acesso a instituições de saúde;
  • 82% relatam demora para realização de exames;
  • 41% só procuram exames quando os sintomas já são graves.

“Esses dados explicam por que o diagnóstico costuma ser tardio nesses territórios. E, por consequência, os tratamentos começam fora do tempo ideal, com prognósticos muito piores”, comenta o oncologista.

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O abismo tecnológico entre o público e o privado

Outra faceta da desigualdade está na tecnologia disponível. Em clínicas privadas, pacientes têm acesso a imunoterapias, radiofármacos e sequenciamento genético tumoral, permitindo tratamentos altamente personalizados. Já na rede pública, muitos hospitais enfrentam problemas básicos de infraestrutura, como aparelhos de radioterapia quebrados ou em número insuficiente.

Em 2024, a Anvisa aprovou medicamentos inovadores como o trastuzumab deruxtecan (para câncer de mama HER2-low) e o Lutécio PSMA (para câncer de próstata metastático). Contudo, nenhum desses tratamentos está amplamente disponível no SUS. “Estamos diante de um abismo tecnológico crescente”, lamenta o especialista.

O retrato da desigualdade na prática

As estatísticas refletem a urgência do problema:

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  • A chance de cura do câncer de mama em estágio inicial ultrapassa 90%; em estágio avançado, cai para menos de 30%.
  • A sobrevida média de cinco anos para câncer de pulmão no Brasil é de 47%, mas pode ser muito menor entre pacientes que dependem exclusivamente da rede pública.
  • No Norte do país, a letalidade por câncer é quase o dobro da registrada nas regiões Sul e Sudeste.

A mudança exige mais que boa vontade

Para o Dr. Ramon, enfrentar essa realidade demanda políticas públicas mais robustas, descentralização de recursos, expansão de tecnologias e combate efetivo à desigualdade social e racial. “O câncer, no Brasil, ainda revela o que temos de mais injusto como sociedade. E enquanto isso não for tratado como prioridade nacional, milhões de brasileiros continuarão morrendo sem ter a chance de lutar em pé de igualdade”, conclui.

Fonte: Instituto Nacional de Câncer (INCA). Relatório Painel Oncologia SUS, maio de 2020. Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//relatorio_painel_oncologia_sus_maio2020.pdf

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